Veias Malditas: Prólogo+Capítulo 1

História postada originalmente no Wattpad e no Spirit Fanfics. Links no final.

---

Quase quatrocentos anos se passaram desde que os vampiros — supostos herdeiros diretos do poder divino da Mãe Sombra, que era também a Deusa Lua — assumiram o poder no Reino da Escuridão. Com tal raça tomando o controle do reino, em meio século a população humana foi reduzida em oitenta por cento, não chegando à extinção devido à sagacidade; grupos e mais grupos fugiram pelo reino ao sul para a chamada Cidade dos Independentes, ou somente Grande Cidade, enquanto alguns decidiram tentar a vida nas ilhas próximas ao reino. Com a retirada dos humanos, os vampiros perderam sua principal fonte de vida e também escravos.

Os clãs do poder do Reino da Escuridão quase perderam o controle. Alimentar-se de animais era deplorável, eles acreditavam. Precisavam de fontes de vida mais fortes, além de escravos mais competentes, uma vez que elfos e demônios menores não eram tão úteis quanto os humanos. Claro, elfos e demônios tinham suas vantagens, mas o sangue era fraco e não possuía as propriedades das quais os vampiros precisavam. Os membros dos clãs estavam certos de que os seres humanos eram os únicos que poderiam suprir suas necessidades e carências, então decidiram enviar guerreiros às ilhas próximas.

Não demorou até as quatro ilhas — antes independentes — mais próximas passarem para o controle dos clãs, sendo anexadas ao reino obscuro. Famílias e mais famílias humanas foram escravizadas, algumas sendo levadas ao reino, enquanto outras eram mortas pela sede de sangue dos vampiros invasores.

Contudo, entre muitas famílias levadas ao reino, uma mulher comprou a liberdade do que restava de seu povo. Ao chegar ao castelo em que ocorriam as reuniões dos três clãs, mostrou que detinha conhecimento acerca de magia e de criaturas místicas em geral, sugerindo que os feras lupinos — seres que oscilavam de tempo em tempo entre forma aparentemente humana e uma forma lupina, por vezes sendo algo entre as duas — fossem os substitutos dos humanos, uma vez que possuíam sangue mais forte e tendência a submissão.

Os sábios dos clãs analisaram a ideia. Nunca haviam tocado em lupinos, pois acreditavam que o sangue fosse impuro e amaldiçoado, já que eram praticamente animais grandes e, portanto, grandes seres irracionais. Porém, a mulher disse algo que tinha tudo para ser real: a tendência a submissão.

Lupinos sofriam com transformações espontâneas da forma humana à forma animal, não possuindo escolhas quando irritados — e o temperamento, em geral, era explosivo — ou em noites de lua cheia. Uma suposta maldição da Deusa. Muitos haviam se adaptado às condições, mas ainda sofriam por muitos outros motivos. Um deles era a alta taxa de mortalidade na primeira transformação de um fera lupino. Muitas crianças morriam de forma extremamente dolorosa quando sofriam transformação espontânea, assim como adolescentes. Muitos lupinos já adultos procuravam maneiras de diminuir a dor e de evitar que descendentes morressem.

Os vampiros viram naquilo a oportunidade que sempre tiveram mas nunca souberam nem aproveitaram.

Com um século e meio no poder, os clãs passaram a buscar feras lupinos para escravizar. Não foi difícil; o Reino da Escuridão estava cheio. Com o tempo, os clãs conseguiram servos lupinos com a promessa de que ajudariam a conter as transformações, a diminuir a dor e a mantê-los fortes e saudáveis. Algumas famílias, as mais pobres, sucumbiram ao controle dos vampiros, que buscavam cumprir sua promessa, desde que os lupinos cumprissem suas obrigações.

Os feras que se recusaram a servir aos clãs, entretanto, causaram problemas. A guerra que levou os vampiros ao poder não era aceita por alguns grupos de lupinos, que viviam longe das áreas dos clãs. Rancorosos e revoltados com a situação de muitos que decidiram se submeter aos vampiros, iniciaram uma guerra.

Os líderes do Reino da Escuridão, então, passaram a ser menos bondosos com os lupinos, ao menos com os revoltosos, que haviam cometido muitos assassinatos a vampiros como forma de protesto. Para os vampiros, quem não se submetesse, teria a vida drenada até o fim, após ver familiares, amores e amigos sofrerem o mesmo destino.

Assim aconteceu.

A população de lupinos livres — ou seja, que não se submetiam aos clãs — foi reduzida em noventa por cento desde aquela época. Alguns escravos tentaram se rebelar, mas encontraram o mesmo fim, uma vez que devido ao sangue lupino, os vampiros estavam cada vez mais fortes.

Agora, os feras lupinos restantes eram caçados no Reino da Escuridão. Possuíam liberdade nos reinos ao sul, porém, tal liberdade estava com os dias contados.

Os vampiros eram sagazes. Cheios de uma grandeza que diziam ser natural, não aceitavam que lupinos — ou quaisquer seres inferiores — se opusessem a eles.

Estavam dispostos a tudo para fazer com que os rebeldes pagassem, enquanto os lupinos estavam decididos a fazer com que o reinado dos vampiros chegasse ao fim.

---

I - Gatos e carruagens

O corpo peludo e não mais tão quente do coelho foi pousado com delicadeza sobre a neve, diante de um grande felino branco e cinza cujas orelhas pareciam pontudas devido aos pelos juntinhos e arrepiados nas pontas. O felino, que lembrava um lince na forma mas não nas cores dos pelos, olhou para o coelho com seus olhos azuis — azuis como os céus das pinturas dos reinos do sul — e, em seguida, para a jovem que colocou o animal enfraquecido à sua frente.

"Ele não morrerá", disse a voz do felino na mente da jovem pálida, que levantou o olhar para encará-lo. "Você não tirou o suficiente para matá-lo, Aleshka."

— Isso me deixa menos preocupada. — respondeu a jovem, afastando algumas madeixas para trás da orelha direita e deixando em evidência o olho de íris tão negra quanto suas vestes e seus cabelos. Abaixo do olho direito, havia três marcas bem definidas que pareciam rasgos fechados.

Entre grandes e imponentes árvores escuras que contrastavam com a neve, moça e animal dialogavam. Aleshka fazia daquilo um hábito desde que descobrira a floresta, onde por ordem dos clãs ela jamais deveria estar.

"Também não foi o bastante pra você", retrucou o felino, levantando-se para caminhar até Aleshka, que voltara a fitar o coelho. "Tem consumido cada vez menos."

Aleshka baixou o olhar, buscando a marca que havia deixado no animal deitado na neve. Os pelos escuros faziam com que a mordida fosse disfarçada, ao menos visualmente.

— Não sou fã de ter pelos por muito tempo na minha boca — respondeu ela quando o felino se sentou ao seu lado.

"E por que eu acho que há mais algum motivo?"

— Não faço ideia, Malvado. — Aleshka olhou para o animal ao lado, que mesmo sentado conseguia ser maior que ela. Os olhos heterocromáticos da jovem fizeram com que o grande gato a fitasse, não sabendo se o olho mais chamativo era o verde ou o preto, que era cego e sem brilho.

"Você não sabe mentir pra mim", respondeu ele, aproximando o focinho do rosto de Aleshka. Esfregou o focinho na bochecha esquerda da jovem, que fechou os olhos e deu um sorriso singelo. "Mas sabe que pode contar comigo, não?"

— Eu sei disso. — respondeu a vampira, abrindo os olhos e ajeitando-se para ficar de frente para o felino. Malvado, por sua vez, tornou a afastar o focinho, agora para fitá-la mais uma vez. — Você é o melhor gato que existe.

Aleshka levou uma das mãos pálidas aos macios pelos do rosto do gato, acariciando até o pescoço e a parte de baixo do pescoço. Malvado, apesar do nome, fechou os olhos em uma expressão de serenidade, começando um ronronar tão dócil que nada combinava com o tamanho de suas patas felpudas e de suas garras.

— Leva o coelho pra toca. — disse a vampira, cujos lábios só não estavam mais manchados de sangue graças aos pelos do coelho. — Algum predador pode matá-lo se sentir o cheiro do sangue.

"Você fala como se não fosse uma predadora também", observou o felino, abrindo os olhos.

— Me referi aos predadores animais — respondeu a jovem. — Tipo seus irmãos, primos, vizinhos etc.

"Ah, não se preocupe. Levarei o coelho à toca dele. Mas o que você fará agora?"

Aleshka baixou a mão e o olhar. Não gostaria mesmo de ter que voltar ao castelo, principalmente naquela data.

Aquele era o dia da reunião dos clãs, uma reunião em família que decidiria o futuro do reino — ou algo assim. Havia uma reunião à cada dois meses. Na ocasião, líderes dos clãs, seus conselheiros e membros importantes se reuniam para debater leis, regras e medidas em relação ao reino. Contudo, o tema da reunião daquela noite era mais específico.

Aparentemente, os clãs visavam caçar ainda mais uma minoria incômoda e mal vista pelos vampiros do reino.

— Preciso voltar. — respondeu a jovem, após alguns segundos de silêncio. — Como fiquei três dias fora, Ivanna deve estar preocupada e Karl já deve ter sido ameaçado de tortura pra dizer em que buraco me enfiei.

"Boa sorte, Aleshka. Você vai precisar", disse Malvado, novamente esfregando o focinho na bochecha da jovem, que retribuiu afagando os pelos mais longos do lado do rosto dele.

— Obrigada, gato. Voltarei assim que conseguir escapar de novo.

Após dizer aquilo, Aleshka se levantou, seguida do felino, que era um gato selvagem.

"Antes, tire esses pelos da sua boca. Não quer que sua família desconfie do que está fazendo, não é?"

— Ah! Bem observado — respondeu Aleshka, passando o dorso da mão sobre os lábios, retirando os fios restantes. — Te amo, Malvado! Até mais!

"Eu também te amo, pequena."

A vampira, então, sorriu, deu as costas e caminhou à passos apressados por entre as árvores, seguindo pelo caminho que tão bem conhecia, enquanto outros de sua raça acreditavam que a Floresta Cinzenta não passava de um labirinto de árvores, animais e tédio.

Apesar da pressa, Aleshka não estava animada. Se pudesse, jamais voltaria ao castelo, jamais veria qualquer um de seus irmãos — exceto Luke — e jamais colocaria sangue na boca, apesar de tudo indicar que aquela era sua natureza. De fato, dependia de sangue para uma série de coisas, mas Aleshka havia adquirido pensamentos diferentes desde que sua irmã, Tanya cometera suicídio. Aleshka se sentia só desde então. Os outros irmãos, mais velhos e arrogantes, consideravam Tanya fraca pela escolha que fizera, de modo que só não apagaram seus registros por conta de Ivanna, a Segunda Mãe dos filhos da Grande Sombra. Acreditavam que Aleshka seguiria pelo mesmo caminho, exceto Luke, e não tentavam mais convencê-la a ser como eles.

Na verdade, tudo o que ela sentia dos irmãos era desprezo.

Com tais pensamentos, seus passos foram perdendo velocidade, até que Aleshka parou e jogou-se de joelhos no chão, olhando para o céu cinzento.

Por que deveria voltar para o lugar em que não era compreendida? Por que não ficar ali, alimentando-se de animais, vivendo entre as árvores?

Porque eles colocariam fogo na floresta, pensou, com amargura.

A jovem suspirou, baixando a cabeça. As madeixas negras caíram sobre seu olho cego novamente, escondendo também as marcas pouco acima da bochecha. Os punhos cerrados estavam sob a capa, tão escura quanto seus cabelos, enquanto o olho verde fitava o chão completamente alvo.

O que seus irmãos diriam se soubessem que Aleshka andava com um frasco contendo uma dose de veneno de dragão? Era o único veneno forte o bastante para matar vampiros, mesmo que fossem descendentes da Deusa Lua. Tanya que o dissesse, se pudesse.

Pensando na irmã, a jovem vampira abriu a bolsinha que carregava sob a capa, ao lado do corpo, e retirou o pequeno frasco cheio de um líquido verde-claro. Aquela era a quantidade que restara do frasco de Tanya, e pelo que Aleshka sabia, era suficiente para encerrar sua existência também.

Então, com a ponta do dedo indicador e do polegar, fez menção de abrir a tampinha, girando-a.

Até que ouviu passos rápidos e, no instante seguinte, alguém saltou do meio das árvores à sua frente, fazendo neve voar por todos os lados ao afundar os grandes pés nela.

— FINALMENTE! — disse o homem à sua frente. Possuía os cabelos cortados bem curtos e uma barba espessa que não encontrava o bigode. A pele morena era pálida devido à falta de exposição ao sol. — Você tá bem, Ale? Ivanna tá surtando!

Akezhka, que havia escondido o frasco sob a capa, observou Karl de pé e levantou-se, largando o fraquinho de volta na bolsa. Não vai ser hoje, pensou, frustrada.

— Suspeitei. — respondeu ela, passando por Karl, que apenas se virou para acompanhá-la. Se ele estava ali, a saída da floresta estava próxima.

E de fato estava.

Karl falava sobre o quanto havia a procurado, como estavam os preparativos para a reunião e sobre o quanto Ivanna estava preocupada com Aleshka, a ponto de colocar homens por todo o reino para encontrá-la — menos na floresta. Havia algo pior do que tédio para vampiros ali, aparentemente, mas nem mesmo Karl imaginava o que poderia ser.

— Mais preocupada do que de costume? — indagou Aleshka sobre Ivanna, já à caminho do castelo com Karl, seu criado e guarda-costas lupino.

— Sim. Não sei o motivo, Ale, mas acho melhor você se apressar.

— Não tô com vonta--

Aleshka não terminou, e cessou os passos. Ainda na estrada que levava ao castelo, mais imponentes que as casas das terras próximas, a jovem viu carruagens de diferentes cores, algumas com adornos brilhantes e belos cavalos brancos, muitas com uma fina aura colorida e mística.

Aquelas carruagens jamais seriam do Reino da Escuridão. Nem mesmo os membros dos clãs possuíam carruagens como aquelas, tampouco usavam as mesmas para ir ao castelo mesmo em dia de reunião.

— Karl... — Aleshka virou a face para o homem, que olhou de lado para ela. — Que porra é essa?

— Olha só... Eu mesmo não tava sabendo, tá? Fique ciente disso. Ainda vai ter a reunião, mas vai ter mais gente, dessa vez. Só soube antes de ir te procurar hoje. Vi esse monte de carruagens cheias de frufrus e fiz a mesma cara que você.

A jovem o encarou, mas não disse mais qualquer coisa. Cerrando os punhos mais uma vez, tornou a caminhar, agora ao lado de um Karl não tão displicente como de costume.

Aleshka estava com raiva, porém, intrigada. Ninguém havia avisado que pessoas dos reinos do sul — os quais não possuíam uma relação tão amigável com o Reino da Escuridão — foram convidadas à reunião daquela noite.

Significava que algo ruim estava para acontecer.

---

Veias Malditas no Wattpad
Veias Malditas no Spirit Fanfics

Comentários

Postagens mais visitadas